Brasserie de Cantillon: uma das cervejarias mais fantásticas do mundo.
Antes de falarmos sobre a cervejaria, vamos falar um pouco sobre as cervejas lambic. Geralmente, no mundo cervejeiro, costumamos falar que existem as lagers e as ales. Mas existem também algumas cervejas muito raras produzidas com um processo de fermentação espontânea. Isso significa que elas não recebem um inóculo específico de leveduras – elas já estão no ambiente e realizam todo o trabalho fermentativo. Cervejas produzidas dessa forma são chamadas de “Lambic”, sendo restritas à região de Bruxelas. Em outras partes do mundo, essas cervejas recebem o nome genérico de “sour” (ou cervejas ácidas), o que não é exatamente a mesma coisa. No processo de fabricação de uma lambic, o mosto cervejeiro é “contaminado” por uma série de microorganismos presentes no ambiente da cervejaria (levedura cervejeira, levedura selvagem, bactérias láticas, bactérias acéticas entre outros). Todo o processo de fermentação dura mais de ano em grandes toneis de madeira. Ao final, a cerveja é filtrada e recebe os ajustes necessários para chegar ao mercado. Algumas levam frutas processadas, como cereja e framboesa. Outras recebem uma adição de açúcar sintético para corrigir a acidez. Existe ainda a possibilidade de blendar uma lambic antiga com uma mais jovem para equilibrá-la. Dizer se essa cerveja é boa ou ruim é subjetivo, o fato é que são cervejas únicas, primitivas, selvagens. Estiveram à beira da extinção, atendendo apenas o tradicional comércio local, mas o “boom” do mercado de cervejas artesanais fez com que elas voltassem com tudo. Como não há produção suficiente para atender à demanda, são cervejas difíceis de serem encontradas fora da Bélgica e uma garrafa pode custar de 15 a 30 Euros, o mesmo que um bom vinho.
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Saindo do centro turístico de Bruxelas e andando apenas 15 minutos por uma região mais residencial e comercial, conhecemos uma outra cidade: cafés baratos, imigrantes, comércios sem nenhum tipo de glamour – na verdade, nada que cause estranhamento a um brasileiro que viva em uma cidade grande.
E assim, caminhando por essa paisagem urbana bastante familiar, chegamos ao museu da Cantillon, próximo a uma grande praça com prédios em volta. Até então, nada indicava que havíamos chegado lá… era o momento da sesta, portas fechadas e os funcionários estavam do lado de fora tomando preguiçosamente uma garrafa de uma das cervejas mais cobiçadas do mundo. Percebendo nossa hesitação, indicaram que o museu estava aberto e que a visita custava 7 euros. Passando pela porta, foi como se tivéssemos entrando em um universo paralelo.
Uma senhora bastante simpática nos recebeu e informou que não havia guia, bastava seguir as orientações escritas nas paredes e que nós terminaríamos o passeio no mesmo lugar onde começava, com direito à degustação de duas taças de cerveja. Tudo chama muito a atenção, a começar pelo cheiro da cervejaria – uma mistura de mofo, madeira, fermentação, frutas e coisas azedas. No aspecto visual, fungo e teia de aranha para todo lado, como se fosse uma casa abandonada.
O equipamento é bastante antigo e muito complicado de ser operado, funcionando em sentido anti-gravitacional: mosturação no 1º piso, fervura no 2º piso, resfriamento no 3º piso. A explicação para isso é muito lógica: numa época em que não havia sistema de refrigeração, o resfriamento do mosto deveria ser feito na parte mais fria da casa, que, no caso, era o sótão. Era nesse momento que começava o processo de fermentação espontânea, com fungos e bactérias presentes no ambiente. Essa fermentação espontânea continuava nos barris de madeira para onde o mosto era transferido depois de resfriado durante a noite. Boa parte dos barris encontra-se também no 3º pavimento. Como a cervejaria é bastante pequena, todo o percurso não dura muito mais do que 30 minutos. Ao final, voltamos para a recepção, onde pudemos provar, junto com aficcionados de todos os cantos do mundo, algumas das preciosidades produzidas pela Cantillon.
Lambic com 18 meses de fermentação, direta do tonel: dourada, limpa, sem gás. Aromas de frutas passadas (abacaxi, pêssego), feno, couro, típico de fermentação selvagem. Bastante seca, ácida e frutada, lembrando uma cidra de maça.
Kriek Lambic (lambic com cereja): rosado intenso, espuma vigorosa, lembrando espumante, aroma forte de cereja, que aparece também no sabor. Na boca, uma mistura fantástica de acidez, dulçor e sal. É usada uma quantidade de 150 kg de cereja para 500L de lambic, que matura por 6 meses após a adição da fruta.
Gueuze: um blend de uma lambic de 3 anos com uma de 1 ou 2 anos de fermentação, a depender da avaliação do mostre cervejeiro e do afinador de lambic. É dourada, limpa, efervescente. Aromas frutados (abacaxi, maça, pera) e selvagens bem equilibrados. Corpo leve, frisante, acidez muito equilibrada e gosto levemente frutado. Na minha opinião, tão complexa e especial quanto um bom Champagne.
Cuvée Saint Gilloise: lambic de 2 anos de idade, com adição a frio (dry hopping) de lúpulo alemão fresco, da variedade Hallertauer Mittelfrüh, que confere uma aroma floral incrível à cerveja. Segundo o cervejeiro, a flor de lúpulo fica em infusão por 2 ou 3 dias, depois ela é imediatamente filtrada e envasada.
Lambic Haute Densité (9% ABV): fermentada por 51 meses, tem coloração âmbar, limpa, quase sem espuma, com aroma de madeira e frutas vermelhas, lembrando um vinho do porto. Na boca, baixo dulçor, acidez equilibrada e um gosto frutado delicioso. Sansacional!
Carignan 2016: para fechar, aceitamos a sugestão do cervejeiro e pedimos uma Lambic de 3 anos com adição uva carignan. Rosado intenso, cheiro de uva, madeira e fermentação selvagem. Na boca, leve adstringência do tanino da uva, acidez mais destacada e gosto de frutas vermelhas. Muito complexa e perfeita para fechar a tarde.